Texto: A marquesa saiu às cinco horas
Paul Valéry, com seu horror à
vulgaridade literária, dizia-se incapaz de escrever um romance por não possuir
a coragem de redigir uma frase como esta: A marquesa saiu às cinco horas. Pois
se dá que neste momento, em crise de frivolidade,
fico pensando nas inúmeras maneiras de descrever um episódio tão banal. Tais
como:
A marquesa
talvez tenha saído às cinco horas, talvez um pouco antes, talvez um pouco
depois, talvez nem tenha saído. Eu pelo menos nem a vi. (Tipo mineiro à José Maria Alkimin)
Ninguém
poderia jurar que a marquesa saiu às cinco horas. (Tipo agnóstico)
Se a marquesa
saiu às cinco horas, às cinco horas, logicamente, a marquesa não devia estar em
casa. (Policial carioca)
A marquesa
(que horror!) saiu às cinco horas! (Estranho)
A marquesa, ô
lá lá, saiu às cinco horas! (Pichador)
A marquesa,
brasileiros, a marquesa saiu às cinco horas. (Oratório)
A marquesa
deu a saída às cinco horas. (Repórter esportivo)
A
marquesinha, que gracinha, saiu às cinco horas. (Vinicinho)
A Exma. Sra.
marquesa deixou os seus aposentos às cinco horas da tarde. (Monárquico)
A marquesa
saiu às cinco horas. Uma pouca-vergonha. (Ressentido)
A marquesa
saiu às dezessete horas. (Esclarecedor)
A Mas. Saiu
às 5. (Sintético)
Venho pelo
presente declarar, a quem interessar possa, que a marquesa saiu às cinco horas.
(Comercial)
A marquesa
saiu às cinco horas gozando o favor do preceito constitucional que lhe assegura
o direito de ir e vir. (Bacharelesco)
Ó marquesa,
por que saíste às cinco horas? (Angustiado)
A marquesa
saiu às cinco horas quase nua. (Libidinoso)
Um dia – lá
se vão muitos anos - a marquesa saiu às cinco horas. (Saudosista)
A marquesa
saiu às cinco horas lançando pianos na tarde. (Murilo Mendes)
A marquesa
saiu às cinco horas como um raio de sol belo e terrível. (Augusto Frederico
Schmidt)
Poxa! A
marquesa saiu às cinco horas! (Carioca)
A marquesa,
tá um pavor, minha filha, saiu às cinco horas. (Amiga da marquesa)
De repente
senti no âmago de meu ser conturbado uma voz qualquer a sussurrar-me, como uma
música vaga que chegasse misteriosamente na tarde, que a marquesa tinha saído
às cinco horas. (Subjetivo)
A marquesa
saíra às cinco horas. (Mais-que-perfeito)
A marquesa
saiu às cinco horas na tarde azul rumando ao Sul no barco em flor do meu amor.
(Bossa nova)
Salve a
marquesa, real turquesa do Brasil do céu de anil que saiu às cinco horas de
reco-reco e tamborim, ai de mim. (Escola de samba)
Se me fora
dado o dom mágico da palavra escrita, eu descreveria tudo que se relaciona
(daria um romance) com o enredo maravilhoso que teve início quando a marquesa
deixou sua linda residência às cinco horas de uma tarde de verão. (Tipo
irremediável)
CAMPOS, Paulo Mendes. A marquesa saiu às cinco horas
(adaptado). In: Balé do pato e outras crônicas. São Paulo, Ática, 1998.
VOCABULÁRIO
Paul Valéry: poeta francês (1871-1945)
Frivolidade: futilidade
José Maria de Alkmin: político brasileiro, natural de Minas Gerais
(1901-1974). A ele é atribuída a frase “O que importa não é o fato, mas a
versão”.
Agnóstico: que só admite os conhecimentos adquiridos pela razão e
evita qualquer conclusão não demonstrada.
Vinicinho: Vinícius de Moraes (1913-1980)
Libidinoso: lascivo, despudorado; devasso.
ENTENDENDO O TEXTO
1.
Que justificativa nos dá o cronista para
distrair-se, pensando nas inúmeras maneiras de dizer “A marquesa saiu às cinco
horas”?
2.
Com um toque de humor, o cronista exemplifica
diferentes estilos nas várias maneiras de descrever um mesmo episódio.
Identifique o estilo que caracteriza:
a)
Um gênero musical
b)
Um discurso padronizado
c)
Uma intenção
3.
O cronista faz alusões aos estilos de Murilo
Mendes, Vinícius de Moraes e Augusto Frederico Schmidt.
Baseado na leitura da crônica, identifique, entre os três poetas, os
autores dos seguintes versos:
a)
“Tua beleza incendiará florestas e navios.
Nasceste para a glória e para as tristes
experiências,
Ó flor de águas geladas,
Lírio dos frios vales
Estrela Vésper.” (Elegia)
b)
“A minha namorada é tão bonita, tem olhos como
besourinhos do céu
Tem olhos como estrelinhas que estão
balbuciando aos passarinhos...” (Elegia
lírica)
c)
Soltam os pianos na planície deserta
Onde as sombras dos pássaros vêm beber.
Eu sou o pastor pianista,
Vejo ao longe com a alegria meus pianos
Recortarem os vultos monumentais
Contra a lua. (O pastor pianista)
4.
Entre as várias características abaixo,
atribuídas aos mineiros, copie a que melhor se identifica com o período “A
marquesa talvez tenha saído às cinco horas, talvez um pouco antes, talvez um
pouco depois, talvez nem tenha saído. Eu pelo menos não a vi”.
a)
Mineiro não grita, não empurra, não impõe sua
opinião.
b)
Mineiro é desconfiado, introvertido,
tradicionalista, e concilia a ingenuidade com a perspicácia.
c)
Mineiro não dá laçada sem nó, não amarra
cachorro com linguiça, nem bate prego sem estopa.
d)
Mineiro é cauteloso, impassível e gosta de
esperar pela cor da fumaça.
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